Dança da chuva

Maria Guimarães – Revista Pesquisa FAPESP.

A Amazônia não é apenas a maior floresta tropical que restou no mundo. Esse sem-fim de verde entrecortado por rios serpenteantes de tamanhos e cores variados também não se limita a ser a morada de uma incrível diversidade de animais e plantas.

A floresta amazônica é também um motor capaz de alterar o sentido dos ventos e uma bomba que suga água do ar sobre o oceano Atlântico e do solo e a faz circular pela América do Sul, causando em regiões distantes as chuvas pelas quais os paulistas hoje anseiam.

Mas o funcionamento dessa bomba depende da manutenção da floresta, cuja porção brasileira, até 2013, perdeu 763 mil quilômetros quadrados (km²) de sua área original, o equivalente a três estados de São Paulo. Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), não aponta o dedo para culpados.

O que importa para ele é reverter esse processo e não apenas zerar o desmatamento, mas recuperar a floresta. No relatório O futuro climático da Amazônia, divulgado no fim de outubro, ele deixa claro que o único motivo para não se tomarem providências imediatas para reduzir o desmatamento é desconhecer o que a ciência sabe. Para ele, o caminho é conscientizar a população. “Agora é um bom momento porque as torneiras estão secando”, afirma.

No relatório, elaborado a partir da análise de cerca de 200 trabalhos científicos, ele mostra que a cada dia a floresta da bacia amazônica transpira 20 bilhões de toneladas de água (20 trilhões de litros). É mais do que os 17 bilhões de toneladas que o rio Amazonas despeja no Atlântico por dia. Esse rio vertical é que alimenta as nuvens e ajuda a alterar a rota dos ventos.

Nobre explica que os mapas de ventos sobre o Atlântico mostram que, no hemisfério Sul e a baixas altitudes, o ar se move para noroeste na direção do equador. “Na Amazônia a floresta desvia essa ordem”, diz. “Em parte do ano, os ventos alísios carregados de umidade vêm do hemisfério Norte e convergem para oeste/sudoeste, adentrando a América do Sul.”

Essa circulação viola um paradigma meteorológico que diz que os ventos deveriam soprar das regiões com superfícies mais frias para aquelas com superfícies mais quentes. “Na Amazônia, o ano todo eles vão do quente, o Atlântico equatorial, para o frio, a floresta”, explica.

Uma parceria com os russos Anastasia Makarieva e Victor Gorshkov, do Instituto de Física Nuclear de Petersburgo, tem ajudado a explicar do ponto de vista físico os fenômenos meteorológicos da Amazônia. Em artigo publicado em fevereiro de 2014 no Journal of Hydrometeorology, eles afirmam, com base em análises teóricas confirmadas por observações empíricas, que o desmatamento altera os padrões de pressão e pode causar o declínio dos ventos carregados de umidade que vêm do oceano para o continente.

O grupo analisou os dados de 28 estações meteorológicas em duas áreas do Brasil e viu que os ventos que vêm da floresta amazônica carregam mais água e estão associados a maiores índices de chuvas do que ventos que partem de áreas sem floresta e chegam à mesma estação.

Isso acontece, segundo os pesquisadores, por causa da bomba biótica de umidade, uma teoria proposta pela dupla russa em 2007 para explicar a dinâmica de ventos impulsionada por florestas. Essa ideia completa a descrição feita pelo climatologista José Antonio Marengo, à época pesquisador do Inpe, de como a Amazônia exporta chuvas para regiões mais meridionais da América do Sul.

A teoria da bomba biótica aplica uma física não usual à meteorologia e postula que a condensação da água, favorecida pela transpiração da floresta, reduz a pressão atmosférica que suga do mar para a terra as correntes de ar carregadas de água.

Os fundamentos da influência da condensação sobre os ventos foram apresentados em artigo publicado em 2013 por Anastasia e Gorshkov, em parceria com Nobre e outros colaboradores, na Atmospheric Chemistry and Physics, uma das revistas mais importantes da área.

Por meio de uma série de equações, eles mostram que o vapor de água lançado à atmosfera pela transpiração da floresta gera, ao condensar, um fluxo capaz de propelir os ventos a grandes distâncias. De acordo com Nobre, a nova física da condensação proposta por eles gerou, ainda durante a revisão do artigo, uma controvérsia com meteorologistas, que debateram o assunto furiosamente em blogs científicos com a intenção de derrubar a principal equação do trabalho.

Não conseguiram e o trabalho foi publicado. O pesquisador do Inpe explica a polêmica. “É uma física que atribui à condensação, um fenômeno básico e central do funcionamento atmosférico, um efeito oposto ao que se acreditava”, diz. “Será necessário reescrever os livros didáticos da área.”

Leia a reportagem completa em:

http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/12/29/danca-da-chuva/

Influência da floresta

O momento agora é crucial porque o clima amazônico vem mudando. Secas importantes nessa região marcaram os anos de 2005 e 2010. “Antes a Amazônia tinha a estação úmida e a mais úmida, agora há uma estação seca”, diz Nobre. Os danos dessas secas na floresta não foram aniquiladores porque ela consegue se regenerar, mas o acúmulo dos danos aos poucos erode essa capacidade.

Um efeito importante que já se observa, previsto há 20 anos por modelos climáticos, é um prolongamento da estação seca, que tem prejudicado a produção agrícola em porções do estado do Mato Grosso. A grande preocupação é que se chegue a um ponto de não retorno, em que a floresta já não consiga produzir chuva suficiente para suprir nem a si própria. Trabalhos de modelagem que levam em conta clima e vegetação indicam que esse ponto será atingido quando 40% da área original de floresta for perdida, um número que não é unânime.

Segundo o relatório de Nobre, 20% da floresta já foi cortada e outros 20%, alterados a ponto de terem perdido parte de suas propriedades.

Se a teoria da bomba biótica estiver correta, os efeitos desse ponto de não retorno devem ser mais graves do que a savanização proposta pelo climatologista Carlos Nobre, irmão mais velho de Antonio (ver Pesquisa FAPESP nº 167). “Se a floresta perder a capacidade de trazer a umidade do oceano, a chuva na região pode cessar por completo”, diz o Nobre caçula. Sem água para sustentar uma savana, o resultado poderia ser uma desertificação na Amazônia. Se isso ocorrer, o cenário que ele infere para o Sul e o Sudeste do país poderia ser semelhante ao de outras regiões na mesma latitude: tornar-se um deserto.

Antonio Nobre não se arrisca a falar muito sobre São Paulo. “Meu relatório é sobre a Amazônia.” Mas ele acredita que a seca por aqui não independe do que acontece no Norte. Em sua opinião, foi possível devastar boa parte da mata atlântica sem sentir uma redução nas chuvas porque a Amazônia era capaz de suprir a falta de água na atmosfera local. Mas isso já não parece acontecer mais. Ele aproveita o ensejo para sugerir que não apenas a floresta amazônica, mas também a que acompanhava a costa de quase todo o Brasil precisa ser recuperada imediatamente. Se não for por outro motivo, o esgotamento a que chegaram as represas que alimentam boa parte da população paulista deveria bastar como argumento.

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