Ricardo Toledo Silva.
No 27° Congresso da ABES, em Goiânia, os planos de saneamento foram assunto recorrente de análise e discussão. A iminência do novo prazo final para a exigência, a 31 de dezembro de 2013, estabelecido pelo Decreto 7217/10 e o fato amplamente reconhecido de que cerca de 70% dos municípios brasileiros ainda não os tem, obrigam à busca de solução que não simplesmente um novo adiamento.
A Lei 11445/07 consolidou princípios de controle social, integração, planejamento e regulação em arcabouço institucional estável. É um progresso importante em relação aos ordenamentos institucionais anteriores e, neste conjunto, os planos de saneamento têm um papel indispensável de amarração. O processo participativo, na base do controle social, legitima os conteúdos do Plano, mas este processo não define, por si só, requisitos específicos de desempenho. Uma vez estabelecidas prioridades socialmente definidas, os planos as devem decodificar em requisitos tangíveis aos serviços, segundo indicadores de desempenho passíveis de regulação e fiscalização objetiva. A regulação é um processo técnico, balizado por parâmetros claros de qualidade e quantidade associados aos serviços prestados.
Também no âmbito do Plano se definem os potenciais de integração entre serviços, de
maneira a promover interações virtuosas e evitar interferências danosas. Por exemplo, a intrusão de enxurradas sobre estações de tratamento de água é uma interferência danosa, que frequentemente obriga à interrupção do abastecimento em meio a situações agudas de inundação, agravando os danos sobre a saúde pública. Por outro lado, um armazenamento criterioso das águas detidas na cheias é garantia de oferta suficiente na estação seca.
Dimensões de integração como as do exemplo, que não pertencem exclusivamente às gestões setoriais de cada um dois serviços, devem ser preocupações centrais dos planos.
Ao estabelecer a existência do plano de saneamento como pré-condição ao à validade do contrato de concessão ou de programa, a Lei 11445 reconhece seu papel central como instrumento de regulação. É o plano que estabelece a correspondência entre a materialidade dos serviços, a partir das prioridades socialmente legitimadas, e a formalidade dos contratos.
Não se trata portanto de mera exigência formal, mas de componente estrutural do processo regulatório. Por isso é absolutamente indesejável que os planos passem a ser objeto de cobrança administrativa ou judicial em face da formalidade do “documento do plano”.
A exigência do plano tem sido muito discutida em função da elegibilidade dos serviços para financiamento por fontes federais, que o consideram condição necessária para acesso. Esta é uma preocupação imediata e objetiva e a autoridade federal tem legitimidade para fixar aquela condição. Mas a urgência em cumprir a formalidade envolve o risco de se inverter a Este último segmento do processo é o mais vulnerável a erros graves, caso os planos passem a ser produzidos em caráter de “urgência”, a um tempo enfatizando os processos de controle social e abreviando a sistematização dos requisitos tecnológicos dos sistemas. A documentação de apoio à elaboração de planos, nas bases oficiais nacionais (Brasil, MC / SNSA 2011b, 2011c; Brasil, MS / FUNASA 2012, 2012a), é bastante detalhada quanto ao processo de participação e controle social, assim como para a elaboração de projetos de engenharia (Brasil, MC / SNSA 2011a) e exigências formais (Brasil, MC / SNSA 2011) mas não aprofunda conteúdos regulatórios. Não obstante, outras iniciativas os têm enfatizado.
Uma delas é o Programa de Apoio Técnico à Elaboração de Planos Integrados Municipais e Regionais de Saneamento Básico vem sendo desenvolvido desde 2008 no Estado de São Paulo, com base em agregações territoriais relacionadas às UGRHI2 estaduais. O vínculo com a gestão dos recursos hídricos cria condições para que os obetivos e metas considerados para os serviços de saneamento reflitam os conflitos de uso e as reais perspectivas de disponibilidade de longo prazo nas respectivas bacias hidrográficas.
Outra é o referencial desenvolvido pela ARCE , em colaboração com a FUNASA e com a ABAR, voltado à sistematização de informação técnica e indicadores de desempenho nos planos de saneamento (Galvão et al. 2010). O foco é a construção de indicadores de desempenho o mais possível padronizados, com vistas à regulação, de acordo com as disponibilidades de informações em bases nacionais, estaduais e municipais. São feitas análises criteriosas das principais bases existente no país, sejam as diretamente relacionadas a água e saneamento – como ANA, SNIS e DATASUS, sejam bases de informações socioeconômicas , de gestão urbana e de finanças municipais, que definem as reais perspectivas de integração entre serviços de saneamento entre si e com outros setores de interesse. O trabalho avalia, para cada sistema considerado, os requisitos de navegabilidade, de atualidade dos dados, de desagregação das informações, de aplicabilidade dos dados aos planos de saneamento e a abrangência das informações disponíveis.
Do exame sistemático, que abrange exemplos significativos de bases estaduais e municipais de diferentes setores, ficam claras duas evidências:
(i) é viável e desejável que os planos municipais e regionais em todo o país sejam predominantemente elaborados sobre indicadores padronizados, aptos a instruir práticas regulatórias uniformes;
(ii) as disponibilidades regionais e locais de informações são muito diferenciadas quanto ao nível de detalhe e de confiabilidade das informações disponíveis. Juntas, essas duas evidências levam a que se admitam planos com diferentes graus de completude em seus estágios iniciais, alguns já aptos ao pleno exercício da regulação e fiscalização sistemática dos serviços, outros nos quais a própria construção da informação será parte do plano.
Esta perspectiva de construção paulatina das informações como meta do próprio plano se contrapõe à exigência de entrega prévia de um plano aparentemente completo na forma. Todas as exigências de conteúdo estabelecidas pela Lei 11445 são indispensáveis para a articulação e equilíbrio entre as dimensões de controle social, planejamento, integração e regulação que hoje definem o arcabouço institucional do saneamento no Brasil. Mas é importante ressaltar que a construção lógica implícita nesse arcabouço é essencialmente relacionada a conteúdos e não à mera formalidade. O objetivo dos instrumentos estabelecidos pela Lei 11445, dentre os quais os planos, não é a institucionalidade em si mesma, mas a execução dos investimentos necessários e a adequada prestação dos serviços.
Se não há condições objetivas para a produção de conteúdos completos em um dado contexto regional ou local, é preferível reconhecer isso abertamente mediante um compromisso para a construção desses conteúdos do que simular sua existência meramente formal em documentos chamados “planos”. É preferível celebrar os contratos de concessão com base em planos provisórios, que estabeleçam as medidas emergenciais e de curto prazo enquanto se completam os elementos técnicos necessários, do que fazê-lo com base em planos aparentemente completos mas inconsistentes.
Sob o ponto de vista da eficácia regulatória, o problema a enfrentar neste momento é
provavelmente maior que o dos aproximadamente 70% dos municípios sem plano. Os
problemas apontados em relação a conteúdos estende-se provavelmente a parte dos planos hoje vigentes. Portanto não seria o caso de mais uma simples dilação de prazo, mas da abertura de canais que permitam um realinhamento de perspectivas tanto dos casos de ausência de planos como dos que precisam revisão.
A ABES, em possível parceria com a ABAR e com as entidades representativas do setor, é canal legítimo para promover um amplo entendimento com as autoridades nacionais responsáveis pela gestão executiva das diretrizes estabelecidas pela Lei 11445, no sentido de valorizar seus conteúdos e de buscar alternativas para as exigências formais da maneira como hoje fixadas.
O pior cenário, sob todos os pontos de vista, é o de uma escalada de cobranças administrativas e judiciais sobre a exigência formal dos planos, indevidamente tidos como peças acabadas. Pior ainda, se a previsão de obras mal resolvidas, em planos tecnicamente frágeis, vierem a motivar demandas pela sua concretização. Isto implicaria, na prática, a neutralização dos princípios de integração do marco regulatório, construído ao longo de anos mediante convergência e esforços de múltiplos agentes políticos, sociais e setoriais que compõem o complexo do saneamento no Brasil.
É preciso ter presente, a cada passo desse processo, que o objetivo do planejamento e dos demais instrumentos do marco regulatório é dar suporte à realização urgente de investimentos na expansão e renovação da infraestrutura de saneamento, assim como à correspondente ampliação e aprimoramento dos serviços prestados. Não é a institucionalidade como fim em si mesma.
Autor
Ricardo Toledo Silva é arquiteto e urbanista. Professor Titular Sênior da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Membro do Conselho Consultivo da ABES-SP e representante da ABES-SP no Conselho de Orientação de Saneamento da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – ARSESP.
Realinhamento
Impõe-se um realinhamento profundo, com base em um amplo compromisso em torno de conteúdos regulatórios dos planos. Esta agenda envolve, de imediato, a necessidade de uma avaliação quantitativa e qualitativa precisa sobre os planos existentes, de maneira a responder de forma inequívoca a questões que perpassaram muitas das discussões sobre a matéria no 27° Congresso.
No âmbito quantitativo:
1. Quantos municípios têm planos, em que estados, de que perfis?
2. Pelo menos os municípios metropolitanos, inseridos em complexos sistemas integrados, contam em sua maioria com planos?
3. Se sim, os sistemas regionais em que se inserem – regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, microrregiões, para não falar os próprios estados – contam com planos de conjunto, que articulem os de jurisdição local?
No âmbito qualitativo:
1. As prioridades e metas estabelecidas com base nos processos de participação e controle social são objeto de indicadores de desempenho compatíveis com a regulação e fiscalização dos serviços?
2. Os conteúdos de integração foram desagregados em metas objetivas a serem preenchidas pelos serviços?
3. As metas emergenciais e de curto prazo correspondem a prioridades dos contratos de programa ou de concessão?
4. As metas de médio e longo prazo estão contempladas nos planos de investimentos dos contratos de programa ou de concessão?
5. No caso de metas que não integram o escopo regulado mas sejam parte da política local / regional de saneamento, há definição de fontes de financiamento que não a receita tarifária dos serviços?
6. Há mecanismos de revisão previstos nos contratos de concessão / programa em face de possíveis readequações de metas dos planos de saneamento?
A demarcação clara de limites entre escopos regulados e investimentos apontados nos planos como obrigações de Estado é fundamental para que os investimentos sejam realizados e os serviços prestados em ambiente de segurança institucional. Os planos são parte indispensável do arcabouço regulatório, mas nem tudo o que consta deles é parte da relação regulada.
Estes são alguns dos elementos que precisam ser conhecidos, verificados e eventualmente corrigidos em relação aos planos existentes, de maneira a que estes cumpram o papel central a eles conferido pela Lei 11445. Uma reflexão nessa linha não implica demérito aos planos existentes ou às iniciativas de apoio até agora trabalhadas em âmbito nacional e subnacional, mas reconhecimento de ajuste necessário sobre instrumentos inovadores que, por inovadores, exigem realimentação e realinhamento.
Leave a Reply