STF: voto de Gilmar Mendes pode mudar rumo da definição sobre titularidade

Em voto proferido no dia 04 de abril, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842-5 Rio de Janeiro, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal iniciou fazendo uma análise dos votos que o antecederam e um resumo do caso. Recordou que as normas estaduais impugnadas referem-se à instituição da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (art. 1º da LC 87/1997/RJ) e da Microrregião dos Lagos (art. 2º da LC 87/1997/RJ). A ADI foi requerida sob o argumento de que os artigos 1º a 11 da LC 87/1997/RJ e 8º a 21 da Lei 2.869/1997/RJ violam a Constituição Federal ao transferir ao Estado do Rio de Janeiro funções e serviços de competência municipal, especialmente quanto ao serviço público de saneamento básico.

Na defesa a Assembléia Legislativa e o Governo do Rio de Janeiro argumentam que o fenômeno da conurbação deve ser considerado na solução de problemas de organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum.

A Advocacia-Geral da União ressaltou que a legislação impugnada considera “um uso eficiente dos recursos públicos e a limitação da capacidade financeira municipal”, assegurando representação política local no Conselho Deliberativo da Região Metropolitana.

Já a Procuradoria-Geral da República opinou pela improcedência da ação, “vez que a transposição total ou parcial de certas atividades ou serviços, antes considerados de exclusivo interesse do município, para além de sua própria órbita, tendo em vista seu tratamento em nível regional não pode ser considerada inconstitucional, visto não haver ofensa à autonomia municipal, restrita, tão-somente, ao interesse local”.

O Relator, Min. Maurício Corrêa julgou improcedentes as ações, aduzindo que a instituição de conglomerados urbanos por atuação legislativa do Estado não afronta à autonomia municipal, minimizada pelo art. 25, § 3º, da Constituição Federal.

Especificamente quanto ao serviço de saneamento básico, o voto do Min. Maurício Corrêa considerou claro que as questões de saneamento básico extrapolam os limites de interesse exclusivo dos Municípios, justificando-se a participação do estado-membro.E que verificado o interesse regional predominante na utilização racional das águas, pertencentes formalmente ao Estado, o que o torna gestor natural de seu uso coletivo, assim como da política de saneamento básico cujo elemento primário é também a água, resta claro competir ao Estado-membro, com prioridade sobre o Município, legislar acerca da política tarifária aplicável ao serviço público de interesse comum.”

Na análise fica claro que os Ministros Joaquim Barbosa e Nelson Jobim abriram divergência sustentando que o estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o Estado.O voto do Ministro Joaquim Barbosa considera que a titularidade do exercício das funções públicas de interesse comum passa para a nova entidade público-territorial-administrativa, de caráter intergovernamental, que nasce em conseqüência da criação da região metropolitana.”

O voto do Min. Nelson Jobim acrescenta que “Considerando o contexto da prestação de serviço de saneamento básico no Brasil, as características de indivisibilidade do serviço, na maioria das situações concretas, as realidades práticas de municípios ditos ‘deficitários’ e outros considerados ‘superavitários’, e ainda os dispositivos da Constituição Federal que claramente prevêem uma competência compartilhada entre União, Estados e Municípios nessa temática, reconehcendo a competência executória do serviço de saneamento básico, não aos Estados ou aos Municípios, mas a um agrupamento de municípios.

Em continuidade à análise O ministro Gilmar Mendes identificou duas orientações quanto à possibilidade de transferência aos estados dos serviços de interesse metropolitano, em especial dos serviços de saneamento básico:

(i) a posição do Ministro Maurício Corrêa, que permite a alteração da titularidade para os Estados, inclusive atuando como poder concedente desses serviços; e

(ii) o entendimento dos Ministros Joaquim Barbosa e Nelson Jobim, que não a admitem.Mas alerta que os votos divergentes dos Ministros Joaquim Barbosa e Nelson Jobim não coincidem quanto à titularidade das funções públicas de interesse metropolitano.

No que se refere a sua visão do problema, Gilmar Mendes, cita o Prof. Alaôr Caffé Alves, quando avalia que razões de ordem técnica, econômica, ambiental, social, geográfica etc. podem transpor certas atividades e serviços do interesse eminentemente local para o regional e vice-versa, sem constituir qualquer violação à autonomia municipal.

Lembra que a Constituição não ignorou os fenômenos da concentração urbana e da conurbação, ou seus desafios, que extravasam interesses locais de modo a atingir diversas comunidades e a situar-se sob diferentes autoridades municipais. O próprio crescimento das estruturas urbanas conecta municípios limítrofes de forma tão acentuada que, por vezes, não é possível discernir e precisar responsabilidades e interesses locais.

Em especial, duas dificuldades agravam-se nessa nova estrutura urbana:

i) a inviabilidade econômica e técnica de os municípios implementarem isoladamente determinadas funções públicas e

(ii) a possibilidade de um único município obstar o adequado atendimento dos interesses de várias comunidades.

E reforça que a Constituição não só devolve a competência da instituição das regiões metropolitanas aos Estados federados, como inaugura outros institutos similares, quais sejam as aglomerações urbanas e microrregiões. “Destaque-se que ponto fundamental na constituição da integração metropolitana é o interesse comum, que não se confunde com o simples somatório de interesses locais” escreve o ministro.

Ele aprofunda a análise ao ressaltar que o desatendimento de determinadas funções públicas pode afetar não só aquela comunidade, mas pode atingir situações além de suas fronteiras, principalmente considerando os municípios limítrofes. Ou seja, a falta de determinado serviço ou atividade que normalmente só diz respeito a uma única comunidade, pode eventualmente neutralizar o esforço de vários municípios ao redor.

E acrescenta que o caráter compulsório da participação dos municípios em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno deste STF, ao julgar inconstitucional tanto a necessidade de aprovação prévia pelas Câmaras Municipais.

No quesito referente aos Agrupamentos Municipais e Saneamento Básico Gilmar Mendes diz que como bem foi apontado pelo Min. Maurício Corrêa, a competência para promover a melhoria das condições de saneamento básico é comum da União, dos Estados e Municípios (art. 23, IX, CF/1988). E que notoriamente, poucos são os municípios que por si sós têm condições de atender adequadamente à função pública de saneamento básico. Normalmente, o próprio acesso aos recursos hídricos depende da integração das redes de abastecimento entre diversos municípios: “captação, tratamento, adução, reserva, distribuição e, posteriormente, recolhimento e condução do esgoto, bem como sua disposição final indicam várias etapas que usualmente ultrapassam os limites territoriais de um dado município”.

Destaca, também, que a inadequação na prestação da função pública de saneamento básico enseja problemas ambientais e de saúde pública que afetam comunidades próximas, principalmente nos casos em que se verifica o fenômeno da conurbação. E que o vínculo entre saneamento básico e saúde pública é tão estreito que a própria Constituição Federal atribuiu competência ao SUS para participar na formulação da política e da execução das ações de saneamento básico (art. 200, IV, CF/1988).

“Dessa forma”, diz o ministro do STF, “a função pública do saneamento básico freqüentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum, apta a ensejar a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal”.

Câmara debate sobre água

A universalização do saneamento no País exigiria investimentos de cerca de R$ 180 bilhões, segundo afirmou o secretário nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, Leodegar Tiscoski. Ele informou que apenas 48% do esgoto produzido no Brasil são coletados, e somente 32% são tratados. Tiscoski participou da abertura do Seminário Conservação, Uso Múltiplo e Reuso da Água e Saneamento Básico, promovido pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

Abordando a retomada dos investimentos Ticoski reconheceu que há dificuldades: “Os estados e os municípios não estavam preparados. As empreiteiras estavam desmobilizadas, o corpo técnico e o conhecimento no setor são defasados”, disse o secretário. Mesmo assim, segundo Tiscoski, até este momento já foram contratados quase R$ 16 bilhões em projetos de saneamento.

Na avaliação do secretário, a Lei de Saneamento Básico (11.445/07) foi um passo importante para a expansão do setor. Tiscoski alertou, no entanto, que para implantar uma política de saneamento ambiental mais ampla é necessário que o Congresso vote uma política nacional de resíduos sólidos. Segundo o Ministério das Cidades, existem cerca de 1.000 lixões espalhados pelo Brasil, oferecendo risco aos lençóis freáticos e cursos d’água.

No seminário, também estão sendo debatidas formas de estimular o uso de água da chuva e a reutilização dos recursos hídricos. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), um dos autores do pedido de realização dos debates, explicou a importância do tema. “Por exemplo: os postos de gasolina utilizam muita água tratada, mas poderiam usar água de chuva, pois têm uma base de captação grande, que é o próprio telhado do posto”.

Além disso, segundo ele, é comum ver nas cidades brasileiras o uso de água tratada para lavar calçadas e regar plantas, o que pode ser visto como um desperdício.

O representante do Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo, Ricardo Pina, destacou que existe no setor uma demanda crescente por equipamentos que possibilitem a economia da água. De acordo com ele, é necessário trabalhar para reduzir os preços desses equipamentos, para que sejam usados em moradias populares.

Fonte: Agência Câmara.

Comparação

Em defesa de sua tese Gilmar Mendes cita que no Direito Comparado discutem-se vários modelos que permitam a integração de comunidades locais para a prestação da função de saneamento básico.

Por exemplo, na área metropolitana de Nova Iorque (NYC) ocorreu verdadeira incorporação de diferentes municípios (Bronx, Brooklin, Manhattan, Queens e Staten Island) para concentrar a execução dos serviços de saneamento básico sob a autoridade do prefeito do município pólo. Assim, o New York City Departament of Environmental Protection controla todo o serviço de abastecimento de água e recolhimento de esgoto.

Na França, criaram-se comunidades urbanas, atribuindo ao âmbito metropolitano os serviços sanitários e de saneamento. Também na Inglaterra, definiram-se competências semelhantes entre a Autoridade Metropolitana e os Conselhos de Distrito metropolitano (cf. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 133).

No Brasil, a Lei federal n° 9.433/1997 estipulou como fundamento da Política Nacional a administração dos recursos hídricos em função das bacias hidrográficas (art. 1º, V, da Lei n° 9.433/1997).

Com efeito, a bacia hidrográfica deve ser o núcleo da unidade de planejamento e o referencial para toda ação de aproveitamento de recursos hídricos, inclusive de saneamento básico, uma vez que consiste no elemento determinante para viabilidade e racionalidade do sistema.

Dessa forma, a integração metropolitana em função de saneamento básico surge como imperativo da própria Política Nacional dos Recursos Hídricos e deve pautar-se no uso racional dos recursos hídricos, além de promover o adequado atendimento do interesse comum e resguardar a autonomia dos municípios.

Nesse contexto, é preciso garantir, por um lado, que um município isoladamente não obstrua todo o esforço comum para viabilidade e adequação da função de saneamento básico em toda região metropolitana, microrregião e aglomerado urbano.

Por outro lado, também deve-se evitar que o poder decisório e o poder concedente concentrem-se nas mãos de um único ente, quer o estado federado, quer o município pólo. Tendo em vista os termos da Constituição de 1988, José Afonso da Silva concorda que “a titularidade [dos serviços comuns] não pode ser imputada a qualquer das entidades em si, mas ao Estado e aos Municípios envolvidos”.

E o autor ressalta: Antes, a região metropolitana deve, como ente colegiado, planejar, executar e funcionar como poder concedente dos serviços de saneamento básico, inclusive por meio de agência reguladora, de sorte a atender o interesse comum e à autonomia municipal.

Exame das normas questionadas

Na conclusão do voto o ministro afirma que a titularidade do serviço de saneamento básico, relativamente à distribuição de água e coleta de esgoto, é qualificada por interesse comum e deve ser concentrada na Região Metropolitana e na Microrregião, nos moldes do art. 25, § 3º, da Carta Magna, respeitando a condução de seu planejamento e execução por decisões colegiadas dos municípios envolvidos e do Estado do Rio de Janeiro.

Dessa forma, os arts. 11 a 21 da Lei nº 2.869/1997/RJ, porquanto decorrentes da decisão singular do Estado do Rio de Janeiro, são inconstitucionais.

E conclui:”declaro a inconstitucionalidade da expressão “a ser submetido à Assembléia Legislativa” do inciso I do art. 5º, além do parágrafo 2º do art. 4º; do parágrafo único do art. 5º; dos incisos I, II, IV e V do art. 6º; do art. 7º; do art. 10, e do parágrafo 2º do art. 11 todos da LC 87/1997/RJ, bem como dos 11 a 21 da Lei nº 2.869/1997/RJ.

Diante do excepcional interesse social na continuidade da prestação do serviço de saneamento básico, suscito a aplicação do art. 27 da Lei n° 9.868/1998, de modo que o Estado do Rio de Janeiro tenha 24 meses, a contar da data de conclusão deste julgamento, para implementar novo modelo de planejamento e execução da função de interesse comum no âmbito das regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerados urbanos que:

(i) acolha a participação dos municípios integrantes; e

(ii) sem que haja concentração de poder decisório nas mãos de qualquer ente.

Nesses termos, entendo que o serviço de saneamento básico -no âmbito de regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerados urbanos – constitui interesse coletivo que não pode estar subordinado à direção de único ente, mas deve ser planejado e executado de acordo com decisões colegiadas em que participem tanto os municípios compreendidos como o estado federado”.

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