Crise do saneamento perpetua desigualdades

A crise da água é uma “crise silenciosa”, uma crise dos que não têm voz e que suportam no cotidiano os efeitos devastadores da exclusão hídrica. Tal como a fome é uma urgência silenciosa tolerada por aqueles que dispõem de recursos, da tecnologia e do poder político para acabar com ela”. Com essa posição firme o representante-residente do PNUD no Brasil, Kim Bolduc, pautou seu discurso no lançamento do Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, no último dia 08,

Ele alertou que a realidade mostrada pelos números dramáticos refletidos nessa crise deveriam preocupar a todos os cidadãos do mundo, pois são barreiras ao Desenvolvimento Humano, aos Direitos Humanos e à Paz. “‘Agua e saneamento são pontos de partida catalíticos nos esforços para combater a pobreza e a fome, promover vidas longas e saudáveis e reduzir a mortalidade infantil” disse Bolduc. E acrescentou: “Não é exagero dizer que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio — ratificados por 191 países em 2000 — só poderão ser cumpridos com melhor fornecimento de água potável e esgotamento sanitário adequado”.

Mais adiante questinou:

“Como cumprir as metas de redução da mortalidade infantil quando, no mundo, 1,8 milhão de crianças morrem anualmente devido à diarréia ocasionada pela água contaminada e pelas más condições de saneamento?

E informou: a diarréia mata cinco vezes mais crianças do que o vírus da AIDS e é hoje a segunda principal causa de mortalidade infantil, após as doenças respiratórias. O acesso ao saneamento pode reduzir o risco de vida de uma criança em 50%.

Outro dado destacado no relatório, segundo o representante do PNUD é que a provisão de água e serviços de esgotamento sanitário também podem reduzir a incidência de doenças que debilitam a saúde materna, facilitando o cumprimento do quinto Objetivo do Milênio. O Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 também mostra com muita clareza a forte imbricação entre a crise do saneamento e as desigualdades. Mais de 660 milhões de pessoas sem saneamento vivem com 2 dólares ou menos por dia, e mais de 385 milhões com 1 dólar ou menos.

Água cara para os pobres

Conforme Kim Bolduc, o preço da água potável reflete um princípio de injustiça muito simples: quanto mais pobre se é, mais se paga. As pessoas mais pobres nas áreas urbanas dos países em desenvolvimento não somente pagam até dez vezes mais do que os residentes mais ricos da mesma cidade pela aquisição de água, como também pagam mais do que as populações dos países mais ricos. Isso se deve à grande quantidade de intermediários, que fazem o preço subir radicalmente. Assim, “o Relatório nos revela que, se por um lado as desigualdades constituem a base da crise da água, por outro lado a crise da água perpetua e alarga as desigualdades”.

No meio urbano, muitos aguardam horas em filas, antes de poderem retornar à suas casas com alguns poucos litros de água em mãos. Além disso, as meninas, especialmente após a puberdade, têm menos probabilidade de freqüentar a escola se esta não tiver instalações sanitárias adequadas.

Do mesmo modo, os pequenos agricultores pobres enfrentam uma crise de água potencialmente catastrófica, derivada do difícil acesso à água e da competição internacional. Em muitas regiões ao redor do mundo, os agricultores abastados extraem águas de aqüíferos 24 horas por dia, enquanto os pequenos agricultores vizinhos dependem dos caprichos da chuva.

Ao concluir seu pronunciamento o representante do PNUD disse que a água pode ser uma ponte para a paz, caso os países deixem de vê-la como um recurso estritamente nacional, para começarem a pensar em uma gestão compartilhada de suas bacias hidrográficas. E advertiu: “se falhar a cooperação internacional, teremos de enfrentar os custos ambientais, humanos e as crescentes tensões políticas”.

Impacto na educação

A falta de água e esgoto tem impacto em uma área vital do desenvolvimento humano, a educação — um dos pilares do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Infecções parasitárias transmitidas pela água ou pelas más condições de saneamento atrasam a aprendizagem de 150 milhões de crianças, um contingente superior à população do Japão. Em razão dessas doenças, são registradas 443 milhões de faltas escolares por ano, informa o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) 2006, lançado pelo PNUD.

“Crianças impossibilitadas de ir à escola por estarem constantemente acometidas por doenças causadas por água imprópria não podem, de modo algum, desfrutar do direito à educação”, observa o estudo. Portanto, “a igualdade de oportunidades, uma exigência fundamental para a justiça social, é reduzida pela falta de água segura”.

A carência de água potável e saneamento é, nesse sentido, um obstáculo ao avanço maior no segundo Objetivo de Desenvolvimento do Milênio , que prevê a universalização do ensino primário. Segundo o relatório, 115 milhões de crianças estão fora da escola. A taxa de analfabetismo entre jovens (15 a 24 anos) é de 12,6% nos países em desenvolvimento — e a proporção é maior no mundo árabe (14,7%), no Sul da Ásia (24,9%) e na África Subsaariana (28,9%). Na América Latina, 3,4% das pessoas dessa faixa etária não sabem ler nem escrever.

O grupo mais prejudicado, ressalta o RDH, são as mulheres: a falta de água e serviços de esgoto adequados aprofunda ainda mais a desigualdade de gênero e dificulta a saída do ciclo da pobreza. “As mulheres e as meninas são duplamente afetadas, já que são elas que sacrificam o seu tempo e a sua educação para recolher água”, afirma o texto. “Para as jovens, a falta de serviços básicos de água e saneamento se traduz em perda de oportunidades em educação e em empoderamento”, acrescenta. Das 115 milhões de crianças fora da escola, 54% (62 milhões) são do sexo feminino.

O tempo que as meninas levam para coletar e carregar água é um dos fatores que explicam a diferença de freqüência à escola entre homens e mulheres em alguns países. Na Tanzânia (África), por exemplo, meninas que moram a no máximo 15 minutos de uma fonte de água limpa têm uma chance 12% maior de desfrutar de ensino do que as que moram a uma hora ou mais. Para os meninos, esse fator tem pouca influência, aponta o relatório.

“Para as meninas em idade escolar, o tempo gasto em viagem — horas, por vezes — até à fonte de água mais próxima é tempo perdido em educação, negando-lhes a oportunidade de conseguir trabalho e de melhorar a saúde e os padrões de vida das suas famílias e de si próprias”, resume o ministro das Finanças do Reino Unido, Gordon Brown, em um artigo escrito especialmente para o RDH 2006.

Brown aborda outro tópico destacado no relatório do PNUD: a falta de instalações sanitárias adequadas nas escolas também é um obstáculo. “Em muitos países o abastecimento inadequado de água e saneamento nas escolas constitui uma ameaça para a saúde das crianças”, observa o estudo. Nesse ponto, novamente, as meninas ficam em desvantagem: alguns pais não permitem que elas freqüentem a escola porque não há instalações sanitárias separadas por gênero.

“Não é possível oferecer educação a todos quando as meninas ficam em casa porque seus pais se preocupam com a ausência de instalações sanitárias separadas”, comenta Brown. O relatório cita estimativas de um estudo que aponta que metade das garotas que largaram os estudos durante o primeiro ciclo escolar fez isso em razão de precárias instalações de água e esgoto.

“Disparidades na educação ligadas a água e saneamento têm impacto de longo prazo, transmitidos ao longo das gerações. A educação possibilita que a mulher participe da tomada de decisões na comunidade. Quando adultas, as mulheres com estudo têm maior probabilidade de ter famílias menores e mais saudáveis — e seus filhos têm menor chance de morrer e maior chance de acesso à escola. Os ganhos são cumulativos — assim como as perdas associadas à desigualdade de gênero ligada a água e saneamento”, afirma o RDH.

A recomendação do PNUD é que as metas e estratégias para universalizar o ensino básico sejam associadas aos projetos que visam assegurar que todas as escolas tenham um sistema adequado de água e saneamento, “com instalações separadas para as meninas”. Em contrapartida, a própria escola pode contribuir para melhorar esse quadro. É preciso, defende o relatório, “fazer do saneamento e da higiene parte do programa curricular, dotando as crianças do conhecimento de que necessitam para reduzir os riscos para a saúde e permitindo que se tornem agentes de mudança em suas comunidades”.

Fonte e fotos: PNUD

O leitor opina

Será que controlar a poluição atmosférica e a qualidade do ar não seria também Saneamento Ambiental?

Prof. Henrique de Melo Lisboa – Departamento de Engenharia Ambiental e Centro Tecnológico (UFSC) – hlisboa@ens.ufsc.br.

Íntegra

Veja no arquivo abaixo a íntegra do capítulo 3 do relatório que aborda o Déficit do Saneamento.

Falta de esgoto mata três crianças por minuto

A falta de acesso ao saneamento mata uma criança a cada 19 segundos, em decorrência de diarréia, afirma o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) 2006, divulgado nesta quinta-feira pelo PNUD.

As estimativas do relatório apontam que há 1,1 bilhão de pessoas sem acesso a água limpa, e que, dessas, quase duas em cada três vivem com menos de dois dólares por dia. Cerca de 2,6 bilhões de habitantes moram em domicílio sem esgoto, dos quais 660 milhões sobrevivem com menos de dois dólares por dia. “A crise do saneamento é, acima de tudo, uma crise dos pobres”, resume o relatório.

Enquanto um habitante de Moçambique usa, em média, menos de 10 litros de água por dia, um europeu consome entre 200 e 300, e um norte-americano, 575 (em Phoenix, no Arizona, o volume ultrapassa 1.000 litros/dia). “No Reino Unido, um cidadão médio usa mais de 50 litros de água por dia dando a descarga —mais de dez vezes o volume disponível para as pessoas que não têm acesso a uma fonte de água potável na maior parte da zona rural da África Subsaariana. Um norte-americano usa mais água em um banho de cinco minutos do que um morador de favela de país em desenvolvimento usa num dia inteiro”, compara o relatório.

Por falta de saneamento água potável e esgotamento sanitário), são registrados anualmente 5 bilhões de casos de diarréia nos países em desenvolvimento. Anualmente, essa doença tira a vida de 1,8 milhão de crianças menores de 5 anos — 4.900 por dia. Ainda que possa ser evitada com medidas simples, a diarréia mata mais do que tuberculose e malária, seis vezes mais que os conflitos armados e, entre as crianças, cinco vezes mais do que a AIDS.

“Água limpa e serviço de esgoto sanitário estão entre os mais eficientes remédios preventivos para reduzir a mortalidade infantil”, diz o RDH. O quadro atual dos países desenvolvidos, que entre o final do século XIX e o começo do século XX registraram uma rápida evolução nessa área, é um forte indicativo disso: a morte de crianças de menos de 5 anos representa menos de 1% dos óbitos nessas regiões. No mundo, representa 20%. Na África Subsaariana e no sul da Ásia, 33%.

Por ter relação tão estreita com outras áreas do desenvolvimento humano, a meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio relacionada a recursos hídricos e instalações sanitárias é crucial para que os outros Objetivos também sejam cumpridos. Para atingi-la, será preciso, até 2015, assegurar acesso a água a mais 900 milhões de pessoas e saneamento a 1,3 bilhão. Em geral, o mundo está avançando, mas essas metas não serão atingidas dentro do prazo se for mantida a tendência atual.

As projeções do RDH 2006 apontam que, no ritmo atual, o compromisso será atingido em 2016 (água) e 2022 (esgoto). Esses números gerais, porém, não revelam as dificuldades ainda mais agudas em algumas regiões — sobretudo na África Subsaariana. A América Latina já cumpriu a meta da água e deve cumprir a de saneamento.

Fonte: PNUD.

Resumo II

# No início do século XXI, uma em cada cinco pessoas residentes em países em desenvolvimento — cerca de 1,1 bilhão de pessoas — não tem acesso a água potável. Cerca de 2,6 bilhões de pessoas, quase metade da população total dos países em desenvolvimento, não têm acesso a serviços de esgoto. (página 33).

# Os governos deveriam ter como objetivo mínimo um gasto de 1% do PIB para saneamento. (página 8).

# O mundo dispõe da tecnologia, dos meios financeiros e da capacidade humana para acabar de vez com a praga da insegurança da água na vida de milhões de seres humanos. O que falta é a vontade política e a visão necessárias para aplicar esses recursos em prol do bem comum. (página 28).

Na América Latina, a porcentagem de excrementos humanos que recebe tratamento situa-se abaixo dos 14%: o restante é despejado nos rios e lagos ou abandonados, infiltrando-se no solo e contaminando águas subterrâneas. (página 39).

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