Vivendo em um mundo em mudanças

Mar de Aral, Kazaquistão

Foto: Mihajlo Filipovic (UNESCO)

Tradução: M. Carmo Zinato (*).

O sistema das Nações Unidas tomou para si um papel de liderança no que diz respeito a esse desafio, por meio do conjunto das Metas de Desenvolvimento do Milênio. A água desempenha um papel crucial nesse contexto. 40% da população mundial vive em situações de extrema pobreza e esforços estão sendo feitos para tirá-la das malhas da pobreza e oferecer-lhe maior proteção contra os desastres naturais que ainda persistem.

A água é o recurso principal que permite a vida. Sua disponibilidade é um componente essencial no desenvolvimento socioeconômico e na redução da pobreza. Hoje, vários fatores significativos têm causado impacto, tanto nesse recurso quanto na gestão de forma integrada, sustentável e eqüitativa. Dentre eles a crescente pobreza, má nutrição, os impactos dramáticos das mudanças demográficas, a crescente urbanização, os efeitos da globalização – com as ameaças e oportunidades que traz consigo – e as recentes manifestações de mudança climática. Todos esses fatores afetam o setor dos recursos hídricos de maneira cada vez mais complexas.

A característica que define o mundo de hoje é a mudança. Em quase todos os setores, inclusive no mundo natural, o ritmo de mudanças é sem precedentes na história recente. Mudanças tecnológicas, especialmente nas tecnologias de informação e comunicação (TIC), facilitam a globalização que, por sua vez, afeta virtualmente todos os aspectos de nossas vidas na medida em que os produtos físicos e culturais são acessados muito mais rapidamente ao redor do mundo. Como a internalização e o crescente crescimento econômico alteram, em muitas sociedades, as estruturas sócio-econômicas tradicionais, é claro que a mudança, apesar de virtualmente pervasiva, não é inteiramente positiva. Muitas pessoas, especialmente no mundo em desenvolvimento, em periferias urbanas e em áreas rurais, são deixadas para trás, na pobreza e à mercê de doenças que se poderiam prevenir.

Exacerbar o desafio do desenvolvimento econômico é o problema da mudança climática, que influencia fortemente o ciclo hidrológico. Secas e inundações, intensificadas por essa mudança, podem levar à fome, perda de recursos financeiros e contaminação de reservas de água. A pressão populacional sobre os recursos florestais pode acelerar a degradação do solo e comprometer as funções das bacias hidrográficas, aumentando a vulnerabilidade das comunidades mais pobres. O aquecimento global, elevando os níveis do mar, efeitos incertos sobre os ecossistemas e crescente variabilidade climática são apenas algumas das mudanças que devem ter um impacto desproporcional e significativo sobre países em desenvolvimento. Enquanto o clima pode reduzir os bens das pessoas mais pobres, a crescente variabilidade climática aumentará sua vulnerabilidade e comprometerá sua capacidade de se recuperar e habilidade de enfrentar as situações. Assim, a variabilidade e mudança climática apresentam um desafio fundamental às prospectivas de desenvolvimento de longo prazo para muitos países em desenvolvimento, e tornarão mais difícil atingir e sustentar as Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDG, da sigla em inglês).

Em resumo, a água é fundamento para nosso modo de vida, em qualquer ponto do espectro sócio-econômico que uma comunidade esteja situada. Da mesma forma é crucial preservar os ecossistemas essenciais dos quais nossas vidas dependem. Quaisquer que sejam as iniciativas de desenvolvimento propostas acima ou abaixo das provisões de acesso seguro à água – e tais iniciativas são muitas e variadas – a menos que os serviços de água requisitados estejam seguros e ofertados, essas iniciativas não terão sucesso. O acesso seguro aos suprimentos de água é essencial. Parece evidente por si só. Mesmo assim, como mostra este Relatório, está claro que o papel central da água no desenvolvimento não está nem bem entendido nem reconhecido. Muito mais precisa ser feito pelo setor de recursos hídricos para educar o mundo em geral e os tomadores de decisão em particular.

Mudando os contextos sócio-econômicos

A pobreza afeta moradores individuais e famílias. No conjunto, afeta aproximadamente 1 bilhão de pessoas no mundo todo. Isso representa um sexto da população mundial total que, com doenças, fome, sede, destituição e marginalização, acha quase impossível sair da situação da extrema pobreza. As pessoas mais pobres lutam para pagar por alimentação e água adequados, habitação, remédios para tratamento de membros de suas famílias, transporte para seus locais de trabalho ou para levar seus familiares doentes a centros de tratamento e pela educação de suas crianças.

Mudanças demográficas

A atual população mundial é de cerca de 6,4 bilhões e está crescendo cerca de 70 milhões por ano, principalmente em países de baixa renda. O que tem sido denominado transição demográfica global, de populações com expectativa de vida curta e grandes famílias para expectativa de vida mais longa e famílias menores, está longe de se completar. Aproximadamente um terço de todos os países ainda está em estágios

iniciais do processo, sendo todos eles países de baixa renda. De fato, o crescimento populacional projetado de 8,1 bilhões para 2030 e cerca de 8,9 bilhões para 2050, quase todo será nesses países (Browne,2005).

Um problema crescente é a competição cada vez maior pela água doce entre usos agrícolas, urbanos e industriais, causando tensão entre áreas rurais e urbanas e possivelmente ameaçando a segurança alimentar nacional e regional. De fato, quase todos os problemas relacionados com má nutrição e pouca alimentação são encontrados em países mais pobres nos trópicos, onde a escassez de água em relação à alimentação, pessoas e meio ambiente está sob mais estresse. Os quatro principais fatores de risco demográfico que estão atualmente desafiando a humanidade: (1) as crescentes porcentagens de adultos jovens, (2) urbanização rápida, (3) a reduzida disponibilidade de água doce e terras agricultáveis para a produção de alimentos, (4) HIV/AIDs – raramente ocorrem sozinhos. Em geral ocorrem em combinação e associados a outros obstáculos, tais como instituições fracas, governos que não respondem adequadamente e tensões étnicas históricas.

Os desafios às lideranças dos governos podem reduzir a habilidade do país de funcionar efetivamente (WorldWatch Institute, 2005). Um problema particular de recente crescimento rápido da população é o chamado `youth bulge’, no qual jovens entre 15 e 30 anos representam mais de 40% do total da população adulta. Muitas pessoas nessa idade não têm empregos e mesmo aquelas com educação formal podem ter problemas em encontrar um trabalho de boa qualidade. 85% dos jovens do mundo estão em países de baixa renda e a média de desemprego é quatro vezes a média geral de adultos. O problema é frequentemente pior em áreas rurais onde homens jovens não podem herdar as terras porque as dimensões dos terrenos, subdivididas ao longo de sucessivas gerações de herança em grandes famílias, tornou-se tão pequeno que não podem mais ser viáveis. Assim, os homens perdem um meio de vida seguro e reduzem as perspectivas de casamentos – uma situação socialmente desestabilizante. Enquanto o youth bulge declinará na medida em que a média de fertilidade continuar a cair, alguns países (em sub-Saara africano e Médio Oriente) ainda estão experimentando rápido crescimento na população adulta jovem. É provável que esses países representem um desafio ao desenvolvimento às suas regiões e segurança internacional. (WorldWatch Institute, 2005).

Crescimento populacional e urbanização

Em 1970, cerca de dois terços da população total mundial viviam em áreas rurais. Por volta de 2001, esse número caiu para apenas 50%. De acordo com as previsões atuais, em 2020 esse número será de 44% com os

demais 56% vivendo em áreas urbanas. Até recentemente, a África era considerada o continente menos urbanizado. Isso mudou. Para 2020, a população urbana africana está estimada em 500 milhões, mais do que os 138 milhões de 1990. Malwi é atualmente a nação com mais rápida urbanização devido à luta da população contra as severas inundações. A Nigéria também tem passado por tremendo crescimento urbano enquanto várias favelas são estabelecidas em Joanesburgo e Nairobi (WorldWatch Institute, 2005).

A urbanização pode ser uma força para o bem, em termos de crescimento econômico e integração global. Entretanto, alguns dos fatores que ajudavam a criar bem-estar em países industrializados, tais como populações jovens, uma classe média, proximidade do poder político e diversidade étnica/religiosa, podem ser fontes potenciais de conflito em cidades de crescimento rápido, mas pobres, em países em desenvolvimento. As estatísticas mostram que os países com crescimento urbano acima de 4% ao ano são duas vezes mais susceptíveis que outras a experiências de distúrbio civil (Population Action International, 2003).

Mudanças econômicas e políticas

Estamos vivendo em um período de rápidas e significativas mudanças geopolíticas. Impérios e países estabelecidos previamente não resistiram (por exemplo a União Soviética e Iugoslávia) enquanto os grupos vizinhos de países buscam uma colaboração ou consolidação econômica mais estreita (por exemplo a União Européia). A ex-economia controlada de forma central da União Soviética é agora uma coleção de estados nações tentando entrar para a economia global, sem a experiência ou instituições para efetivamente conseguir isso. Tensões étnicas suprimidas em antigos sistema políticos dentro da ex-Iugoslávia eclodiram em conflitos armados nos Balcans. Novos estados nações, preocupados em compartilhar recursos hídricos de rios e aqüíferos transfronteiriços, tornaram-se muito defensivos sobre sua percepção de soberania sobre tais recursos, especialmente quando há pressão sobre esses recursos pelo aumento da demanda e deterioração da qualidade da água.

(*) Maria do Carmo Zinato é editora do informativo Fonte D’água e vice-presidente do IBEASA. .

Fonte: 2nd UN World Water Development Report,. 2006. WWAP / UNESCO.

Tradução Fonte d´Água (Maria do Carmo Zinato), Brasília (DF), out-2006.

Estados de guerra e conflitos

A Unidade de Avaliação Pós-Conflitos do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) mostrou que conflitos são quase sempre seguidos de crises ambientais: vazamentos químicos em cursos d´água, danos nos sistemas de irrigação, desmatamento, a destruição de infra-estrutura e colapso de sistemas de governança – local e nacional.

Economias em reconstrução, vidas prejudicadas, infra-estrutura danificada, inclusive os sistemas de água e poder, reconstrução e restauração de sistemas de irrigação, remoção de minas terrestres em situações pós-conflito, absorvem 27% de todas as Ações Assistenciais além-mar (Worldwatch Institute, 2005). A Convenção sobre a Proibição de Uso Militar ou Qualquer Outro Uso Hostil de Técnicas de Modificação Ambiental (Convenção ENMOD, de sua sigla em inglês) busca proibir atos, tais como modificação do tempo e criação de inundações com danos. A ameaça que representou o lançamento de químicos tóxicos no meio ambiente resultou em pedidos de uma nova convenção. Não é uma coincidência que muitos dos países que ainda fazem progresso no alívio de débito são aqueles que recentemente emergiram de situações de conflitos.

Inovações Tecnológicas e Água

A tecnologia pode oferecer oportunidades significativas para o setor de recursos hídricos. Em tratamento de água, a tecnologia de membranas é um exemplo. Membranas são sistemas de filtragem manufaturados que

podem separar da água uma grande e crescente quantidade de substâncias – tanto orgânicas quanto inorgânicas – que estão presentes nela. Podem ser usadas para tratamento de água potável e industrial, de esgoto e outras finalidades. Os altos custos inicias estão se reduzindo substancialmente e a tecnologia está cada vez mais disponível no mundo todo. O uso de ultra-violeta na água para potabilizá-la, em tratamentos para fins industriais, e para reduzir a carga de poluentes dos efluentes, está aumentando. Nova compreensão emerge dos tratamentos e reciclagem de esgoto in loco, de pequeno porte e sistemas de colega de esgoto. Acabam por oferecer baixo custo, em geral, para o abastecimento de água e sistemas de saneamento, além de

opções de recuperação de nutrientes, assim como redução da complexidade dos grandes sistemas centralizados. (Mathew and Ho, 2005).

Muito tem sido feito sobre a divisão digital, a desigual distribuição e acesso às tecnologias de comunicação no mundo para o uso da informação e seu uso. A ONU respondeu a esse problema criando o `Fundo de Solidariedade Digital’ em março de 2005, visando permitir pessoas e países atualmente excluídos da sociedade da informação de ganhar acesso a ela. Iniciativas propostas incluem a construção e operação d telecentros regionais onde as pessoas têm acesso a computadores, Internet, telefones e outros equipamentos. Ao mesmo tempo, ênfase deve ser dada ao conhecimento e à construção de capacidades que possam ser mais facilmente compartilhados nesse mundo de comunicações crescentes.

Globalização

Atualmente, o mundo está passando por um processo sem precedentes de integração financeira, comercial, de comunicação e tecnologia. Eliminando tarifas e obtendo barreiras comerciais, a economia mundial está se tornando cada vez mais interligada. Isso tem vantagens. Os custos das transações e os riscos de investimentos podem ser reduzidos e mais investimentos encorajados. A crescente competição estimulada pela integração regional força a competição e a inovação. Custos reduzidos em telecomunicações e infra-estrutura energética são possíveis. Para a água, a globalização permite economias de escala por meio do acesso a mercados maiores, facilita a cooperação mais aprimorada sobre as águas transfronteiriças, e permite uma abordagem baseada em vantagens na direção de sistemas de recursos hídricos regional e colaboração inter-países sobre a transferência de conhecimento e habilidades com as águas. As desvantagens, entretanto, devem incluir o aumento da escassez e poluição das águas, se a demanda e poluição da água não forem cuidadosamente manejadas (World Development Report, 2005).

Em alguns países, há movimentos para retirar a água da produção de cultivos de baixo custo para cultivos mais valiosos, monetariamente falando tais como vegetais, frutas e flores. Como cresce a exportação, há preocupações de que as regras do NAFTA e da Organização Mundial do Comércio (WTO) aumentem os riscos ambientais devido às suas restrições sobre o uso do princípio precatório. Críticas severas dessas regras

das organizações argumentam que WTO, por exemplo, tenha sempre colocado os interesses de comércio antes da proteção ambiental. Uma das conseqüências da globalização e o aumento de economias baseadas em mercado é que os direitos de mercado têm sido apontados amplamente como a forma de manejo dos recursos naturais.

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